Dissecando a morte

Quero iniciar esse texto compartilhando minha admiração pelo autor do livro "A menina que roubava livros", achei muito interessante a forma como ele cria o personagem da morte no livro, colocando-o como narrador da história, de como a morte observa os detalhes do momento final de cada pessoa, descrevendo as cores minuciosamente e de como era diferente esse encontro com cada pessoa, de acordo com o que ela tinha vivido sua vida aqui nessa terra.
Me peguei pensando nas pessoas importantes que passaram por minha vida e que já não estão mais aqui. Lembrei-me dos meus avós, tios, sobrinhos, irmãos, pai, filha, amigos e parentes de amigos. Cada uma dessas pessoas um dia esteve presente em minha vida de alguma forma e puderam me ensinar muitas coisas e tive oportunidade de ensiná-las também. Recebi amor de cada uma delas e também amei cada uma delas, umas mais outras menos, senti a falta de cada uma delas, algumas mais que as outras.
Me lembro com saudades dos olhos azuis de minha vó e da sua voz doce, contando histórias antigas e debatendo atualidades da época, era uma mulher inteligente e linda, sinto falta do cheiro dos seus cabelos também. A morte a buscou num leito de hospital, após ter que amputar uma das pernas que havia morrido ainda no seu corpo com vida, ela veio e levo-a de nós, sem muita demora. A morte já havia levado um sobrinho jovem e não o levou sozinho, foi acompanhado da namorada e mais dois amigos, de uma forma cruel e que não conseguíamos acreditar em tamanha maldade, de como seres humanos são capazes de assassinar com tanta covardia. Dele me lembro dos cabelos claros, olhos lindos e me dizendo que queria ser médico quando crescesse. Acredito que até a morte ficou impressionada com a brutalidade com que foram levados.
Sinto muita saudade de meu irmão, que também se foi, num leito de hospital, coração enfraquecido por causa das tristezas da vida e de um problema cardíaco, tenho pra mim que ele se entregou a morte de uma forma calma, como se a chamasse pra si, cansado e sem vontade de lutar. Dele me lembro da nossa competição de vômito, estava grávida na época e passava muito mal, era cuidada por minha mãe e ele também, ficávamos na beira do tanque, vendo quem vomitava mais, riamos disso, sinto falta da risada e do tom de voz que ele tinha.
Alguns meses após perder meu irmão, a morte me persegue novamente, dessa vez veio em forma de pesadelo, me avisando que me levaria, me lembro de fugir muito dela durante a noite, mas no dia seguinte, após um parto que aconteceu um mês antes da hora marcada, perco minha filha e me vejo voltando pra casa sozinha. De todas acho que foi a pior. Segurar o corpo sem vida da minha filha naquele CTI foi paralisador, acho que essa é a palavra que me define naquele momento, paralisada no tempo, sem noção das horas que se passaram ali. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo e só queria um jeito de poder colocar vida de novo dentro dela, mas a morte não negocia.
Meu pai foi o próximo da lista, após uma série de enfermidades, ficou debilitado e a morte também o encontrou em um leito de hospital, como na maioria dos casos, ela foi rápida, quase não dando tempo pra despedidas.
Também posso relatar os inúmeros amigos que se foram, deixando saudades. Crianças, jovens, adultos, cada um levando consigo um pedacinho de mim e deixando comigo um pedacinho deles.
Agora tenho vivido um grande dilema, após ter sido tocada pela morte de tantas formas diferentes, estou me sentindo como ela hoje, e confesso que senti pena dela, pois é uma tarefa muito difícil e dolorida demais.
Não sou muito boa com datas, pra falar a verdade sou péssima com elas, nunca consigo guardar dia de nada e venho tentando me lembrar a quanto tempo adotamos nossa cachorrinha que demos o nome de Belinha, e acho que já são quase sete anos que ela pertence a nossa família, veio de outro lar onde apanhava muito e estava muito triste e suja, foi difícil conquistar o coração dela, mas nós conseguimos e ela também conquistou o nosso. Tem sido minha companheira, me segue por todos os lados e ao mínimo sinal de movimento meu ela se levanta e fica atenta a tudo, gosta de me olhar nos olhos, admiro muito isso nela, é sincera e carinhosa, mais que muitas pessoas que esperaria que fossem. Pois é, disse que tenho me sentido como a morte pois ela foi diagnosticada com Leishmaniose e preciso sacrificá-la, a decisão tem que ser tomada por mim e confesso que a dor do meu coração é tão grande que não dá pra escrever em palavras. Talvez você que me lê agora e nunca amou um animal assim pode achar que é exagero, besteira, mas queria te dizer que se um dia você tiver o prazer de conviver com um animal que te ame como a Belinha nos ama, você vai me entender. Ela veio pra nossa casa num momento de perda, onde tinha passado por um divórcio, meus filhos se apegaram a ela, recebendo e dando carinho que todos precisavam. Ela que vinha de um lar que a maltratava e nós que havíamos perdido alguém. Você consegue assimilar isso? Espero que sim! 
Não sei como a morte se sente quando precisa fazer o seu trabalho, talvez com tanta experiência já tenha se acostumado, mas acho que até mesmo a morte, em alguns momentos se depara com situações que a fazem pensar um pouco mais, situações que ela deve questionar algumas coisas e quem sabe talvez por um momento pense em não completar seu serviço, passando de lado e deixando pra voltar um tempo depois... queria ter esse tempo...
Hoje a Belinha está um pouco deprimida, acho que ela tem visto todo mundo chorando perto dela e percebeu o que está pra acontecer, ela é inteligente e sensível, preciso providenciar tudo e não tenho forças pra olhar nos olhos dela, como a gente sempre faz uma com a outra. Como explicar pra alguém que você ama que terá que sacrificá-la, não consigo encontrar as palavras certas, acho que é por isso que a morte nunca fala nada, ela simplesmente vem e leva as pessoas que nós amamos, sem nos dar chance de perguntar nada e nem negociar.
Como morte sou um completo fracasso, mas em contra partida tenho que me alegrar por isso, pois na verdade Deus nos chamou pra sermos vida, talvez seja por isso que a morte nos incomoda tanto, porque se temos que levar vida por onde formos, quando nos deparamos com a morte sentimos a necessidade de lutar com ela, isso é natural de quem possui a verdadeira vida dentro de si. 
Como cristã, não tenho medo da morte, sei que teremos que passar por ela, a não ser que Jesus volte antes e nos leve com Ele. Sei que o que me espera é muito melhor do que eu possa imaginar, que não haverá lágrimas para onde eu for, então me consolo em Jesus e peço a Ele que me dê forças pra fazer o que deve ser feito, mesmo que isso arranque um pedaço de mim...

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